segunda-feira, 26 de outubro de 2009

CRASE: FUSÃO, E NÃO CONFUSÃO.

A crase, entre os vários estudos da língua portuguesa, é um tema que oferece algumas dificuldades de entendimento. De modo geral, o falante a emprega na escrita, mas sem critérios bem definidos. Esse uso aleatório e intuitivo pode, inclusive, trazer problemas de clareza ao texto.

Antes de tudo, é preciso compreender o que realmente é crase. Ela é um fenômeno antigo na língua portuguesa, responsável pela forma atual de boa parte do nosso vocabulário, pois se refere à fusão de duas vogais iguais em uma só. Quando, hoje, escrevemos a palavra “pé”, temos aí o resultado de uma crase. Como se deu isso? No latim, esse vocábulo era escrito “pede”. Com o tempo, o “d” passou a ser pronunciado de uma forma tão débil, que foi suprimido, restando a forma “pee”. A presença de duas vogais iguais na palavra levou os falantes – como sempre, atendendo à lei do menor esforço – a fundi-las, o que fez surgir a forma atual. Portanto, na fase intermediária da sequência evolutiva desse vocábulo (“pede” > “pee” > “pé”), houve uma crase, isto é, a fusão da vogal “e”. Como o resultado dessa crase foi um monossílabo tônico (palavra com apenas uma sílaba dotada de acentuação), tornou-se necessário o uso do acento agudo, a fim de atender à regra de acentuação referente a esse caso (Todo monossílabo tônico terminado em “e” deve ser acentuado graficamente.).O mesmo fenômeno ocorreu com “nu” (“nudu” > “nuu” > “nu”) e com “cor” (“colore” > “color” > “coor” > “cor”), em que as vogais “u” e “o”, respectivamente, foram fundidas para gerar as formas contemporâneas do português.

Ao contrário do que se pensa, a crase não aparece somente na escrita. A nossa fala é bastante permeada por esse fenômeno. Em inúmeras situações, fundimos vogais iguais que se encontram na estrutura da frase. Ao falarmos, de modo espontâneo, a sentença “A casa azul está alugada.”, fazemos a fusão do “a” final de “casa” e “está” com o inicial de “azul” e “alugada”, respectivamente. Podemos representar essa pronúncia da seguinte maneira: “A casazul estalugada.”. Esse é um exemplo de como a crase aparece frequentemente na comunicação oral.

Na escrita, porém, a crase deve ser identificada para o leitor com o acento grave (aquele tracinho inclinado para a esquerda). Nesse caso, seu uso se restringe ao encontro da preposição “a” (exigida pela palavra anterior) com o artigo definido “a” (exigido pela palavra feminina posterior) ou o “a” inicial dos pronomes demonstrativos “aquele”, “aqueles”, “aquela” e “aquelas”. Sendo assim, na frase “Ele se dirigiu à cidade mais próxima.”, houve a crase da preposição “a” exigida pelo verbo “dirigir-se” (Alguém se dirige a algum lugar.) com o artigo exigido pela palavra “cidade” (Dizemos: “A cidade mais próxima fica a 10km.”, e não “Cidade mais próxima fica a 10km.”). Para deixarmos claro ao leitor de que houve esse fenômeno linguístico, sinalizamos com o acento grave no “a” craseado (fundido).

Se tomarmos como base o fato de somente ocorrer a crase nesses casos e com essas características, fica mais fácil de entender que jamais devemos colocar o acento grave diante de vocábulos que não admitem artigo feminino, como, obviamente, palavras masculinas (“Foi morto a tiro.”) ou artigo indefinido (“Referiu-se a uma pessoa da platéia...”), além de verbo (“Tudo a partir de 1,99”), determinados pronomes (“Disse tudo a ela.”; “Solicito a Vossa Senhoria...”; “Compareci a essa festa.”; “Pediu a cada um de nós...”), entre outros. Quando a palavra anterior não exige preposição “a”, teremos apenas o artigo referente ao nome posterior. Em “Comprei a loja.”, o verbo “comprar” não precisa de preposição (Alguém compra algo.), logo o “a” se trata do artigo exigido pelo nome feminino “loja” (Dizemos: “A loja foi comprada.”, e não “Loja foi comprada.”).

Portanto não é preciso ocuparmos nossa memória (já lotada de dados) com um mundo de regras. Na verdade, é possível pensar (e não decorar) sobre o uso da crase dentro da estrutura da frase escrita. Ela consiste num fenômeno linguístico coerente e à nossa disposição para que possamos nos comunicar de modo eficiente.

(Coluna “No quintal das palavras”. Artigo publicado no Lagos Jornal, Ano V, nº 460, Região dos Lagos, quinta-feira, 25-6-2009, p.4)

segunda-feira, 5 de outubro de 2009

HÍFEN: TER OU NÃO TER? EIS A QUESTÃO.

O novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa trouxe várias alterações no uso do hífen em palavras compostas. Tendo em vista contradições e omissões da reforma, algumas dessas regras, tiveram a necessidade de serem discutidas e esclarecidas pela Academia Brasileira de Letras. Com isso, a interpretação feita, unilateralmente, pelos linguistas brasileiros determinou o que representava no texto da lei as expressões “certos compostos”, “em certa medida”, “noção de composição” e os vários “etc.” (até mesmo nas exceções), o que, ainda, suscita algumas polêmicas.

De maneira geral, o espírito sugerido pelo Acordo de se levar à queda do hífen foi respeitado pela ABL, e as exceções ficaram restritas às palavras citadas antes do termo “etc”. Após essas decisões, já nos é possível identificar o que especificamente mudou nas regras do uso do hífen. Essa normatização já está sistematizada no mais recente Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (mais conhecido entre os especialistas como VOLP).

Agora, não há hífen nos casos em que o primeiro elemento termina por vogal diferente da que inicia o segundo: antiaéreo, autoajuda, autoescola, autoestrada, autoexame, contraindicação, extraoficial, infraestrutura, intrauterino, neoimperialista, semiaberto, semiautomático, semiárido. Se as vogais forem iguais, mantém-se o hífen: auto-observação, contra-almirante, arqui-inimigo, micro-ondas, micro-ônibus, semi-interno. Para esse caso, a exceção se restringe ao elemento “co”, que mantém a junção: coobrigação, coocupante, coordenação, cooperação.

Quando o primeiro elemento termina por vogal e o segundo, por “r” ou “s”, não se emprega mais o hífen, mas há a necessidade de se duplicar tais consoantes: antessala, antirreligioso, autorretrato, antirrugas, antissocial, arquirrivalidade, autorregulamentação, contrarregra, contrassenha, cosseno, extrarregimento, extrasseco, extrassístole, infrassom, intrarrenal, minissaia, missérie, suprarrenal, suprassensível, ultrarromântico, ultrassonografia, ultrassecreto.

Um dos pontos mais polêmicos quanto à queda do hífen foi a observação relacionada a “certos compostos, em relação aos quais se perdeu, em certa medida, a noção de composição”, tais como girassol, madressilva, mandachuva, paraquedas, paraquedista, pontapé. As questões são: 1) se não há pesquisas científicas sobre essa perda de “noção de composição”, quais os critérios para a relação dessas palavras? 2) o que se quer dizer, precisamente, com a expressão “em certa medida”? 3) se o texto da lei termina a lista com “etc.”, como saber quais são essas outras palavras?

Um aspecto novo no Acordo diz respeito aos nomes de lugares, para os quais, antes, não havia nenhuma regra. Aqueles iniciados por “grã” ou “grão” ou por verbo recebem hífen (Grã-Bretanha, Grão-Pará, Passa-Quatro), assim como os ligados por artigo (Baía de Todos-os-Santos). Já Guiné-Bissau e Timor-Leste figuram como exceções à regra.

Outro caso novo é o das palavras relacionadas a espécies vegetais e animais, que devem ser grafadas com hífen. Assim, temos água-de-coco, azeite-de-dendê, couve-flor, bem-te-vi, bico-de-papagaio para a planta. Para o problema de coluna ou de nariz adunco, a forma é bico de papagaio, uma vez que está fora desse contexto.

A última novidade da reforma está nas palavras que se ligam, formando encadeamento vocabular, como, por exemplo, ponte Rio-Niterói, ponte aérea Rio-São Paulo, que, agora, devem ser unidas pelo hífen. Antes, a escrita era feita com o uso do travessão (“–“). Ou seja: é só diminuir o tamanho do traço.

A ABL fez várias sugestões para preencher as lacunas deixadas pelo novo Acordo Ortográfico. Para nós, brasileiros, no entanto, tais orientações assumem o valor de lei, o que não é certo de ser acatado por Portugal. Devemos ter atenção, inclusive, às publicações didáticas ditas “atualizadas conforme o acordo”, feitas no ano passado com o propósito de garantir a cota de venda ao governo brasileiro, uma vez que não trazem as últimas decisões da ABL.

Na realidade, é preciso muita calma nessa hora: temos até 2012 para internalizar tudo isso!

(Coluna “No quintal das palavras”. Artigo publicado no Lagos Jornal, Ano V, nº 455, Região dos Lagos, quinta-feira, 18-6-2009, p.4)